Michael Ende (1929-1995) foi um escritor alemão de romances fantasiosos e infantis e ficou conhecido por criar "A história sem fim", livro que depois foi adaptado para filme (é, aquele do chachorro branco alado gigante, esse mesmo!). Trago a vocês um conto dele do qual gostei muito, sobre um mundo de magia movida pela força dos desejos. Confira!
Conforme contam muitas histórias e contos de fada, o Reino dos Desejos é uma terra onde "desejar pode servir para alguma coisa". Aliás, esse reino não fica tão longe do nosso mundo do dia-a-dia quanto pensa a maioria das pessoas; mesmo assim, é bem difícil chegar até lá. É que só se consegue entrar no Reino dos Desejos com um convite pessoal, pois seus habitantes não querem saber de turismo em massa. Talvez muita gente ache isso lamentável, mas, no fundo, é bom que seja assim - e quem ler este meu relato certamente irá concordar comigo.
A maioria dos magos e feiticeiros dos tempos antigos vinham desse reino. Hoje em dia eles preferem não sair de onde estão, com poucas e raras exceções. Pode-se dizer que no Reino dos Desejos todos sabem praticar um pouco de magia. Só que para aprender a fazer as coisas direito é preciso freqüentar uma escola.
Há muito tempo, bem antes de a maioria de vocês ter vindo ao mundo, numa das minhas inúmeras e longas viagens, fui dar nessa terra lendária (como já disse, com um convite oficial, é claro). Para poder estudar a fundo os usos e costumes de seus habitantes, fiquei lá por algum tempo, e então conheci duas crianças, com as quais fiz amizade. Eram irmãos gêmeos: um menino chamado Mug e uma menina chamada Amalasvinta - para facilitar, todos a chamavam de Mali. Eles tinham aproximadamente nove anos, olhos azuis e cabelos pretos. Mug usava corte escovinha e Mali usava franja. Eram filhos dos donos da pensão onde eu tinha alugado um quarto. Era uma família muito simpática. As crianças eram muito gentis e me ajudavam em meus estudos, na medida do possível. Assim, de vez em quando eu tinha permissão para
assistir às aulas delas na escola. Na maioria das vezes eu me sentava no fundo da sala, na última carteira, e ficava apenas ouvindo em silêncio, para não atrapalhar.
Aliás, não é qualquer criança que pode freqüentar uma escola desse tipo, mas aquelas especialmente dotadas, isto é, que tenham uma força de desejo fora do comum. Geralmente, todas as crianças têm a capacidade de desejar muito uma coisa ou outra, só que quase sempre isso dura pouco e logo elas esquecem. Para poder ir à escola de magia, é preciso ter a capacidade de desejar ardentemente e com muita perseverança. Por isso, as crianças passam por um exame de seleção.
Na classe que conheci havia sete alunos, mas não quero apresentar agora os outros cinco, pois demoraria muito. Aliás, como fiquei sabendo mais tarde, o número de alunos em cada classe tinha de ser sempre ímpar e menor do que dez, portanto, no mínimo três e no máximo nove. Quando havia mais de nove crianças matriculadas, era formada uma classe suplementar; quando havia número par de matrículas, esperava-se até aparecer mais uma. Nunca fiquei sabendo por que era assim.
O professor se chamava Rosmarino Prata. Era um senhor gordinho, de idade indefinida, que usava uns óculos pequenos no nariz e uma cartola azul-celeste na cabeça. Estava quase sempre com um sorriso matreiro nos lábios e parecia difícil que alguma coisa pudesse perturbá-lo.
Quando ele chegou na sala de aula, no primeiro dia, todos os alunos já se encontravam em seus lugares (eu, como disse, lá no fundo), olhando-o, ansiosos. O professor se apresentou, cumprimentou-os e perguntou-lhes seus nomes, como também é costume entre nós. Em seguida, sentou-se em sua poltrona, perto da lousa, cruzou os dedos por cima da barriga e fechou os olhos.
- Por favor, sr. Prata - perguntou Mug, já impaciente e em tom meio atrevido -, quando vamos começar a fazer mágicas?
Como o professor continuava calado, ele repetiu a pergunta em voz mais alta. O sr. Prata abriu os olhinhos e fitou-o pensativo através dos óculos. Com um sorriso, respondeu:
- Não precisa gritar, meu filho, não sou surdo. Tenham um pouco de paciência, pois preciso explicar-lhes uma coisa muito importante e estou pensando em como fazê-lo.
Depois de ficar mais um tempo calado, ele disse:
- Então vocês todos estão aqui porque querem aprender a fazer mágica, não é? Pois quero que me contem como imaginam que isso seja.
Mali levantou a mão:
- Eu acho que vou precisar decorar uma porção de palavras e fórmulas mágicas, talvez também alguns gestos e sinais para fazer com as mãos.
Um outro menino disse:
- Talvez seja necessário aprender a usar uma porção de aparelhos, como retortas ou seja o que for, e também vidros especiais de conservas...
- E todo tipo de ervas, pós e outros produtos - exclamou uma menina.
- Uma varinha mágica! - sugeriu outra.
- Ou livros secretos - sugeriu um menino -, que só podem ser decifrados quando se conhece a chave dos códigos.
- Uma espada mágica! - exclamou Mug, entusiasmado.
- E talvez um manto longo e bonito - sonhava Mali -, de veludo azul, bordado de estrelas, e um chapéu alto e pontudo...
- Mas isso tudo - interrompeu o sr. Prata - são apenas recursos externos, importantes para uns, mas não para outros. O que é necessário, de fato, é bem mais simples e, ao mesmo tempo, bem mais difícil. Está dentro de vocês mesmos.
Todos se calaram, perplexos.
- Pois bem, é a força de desejar - prosseguiu o sr. Prata. - Quem pretende fazer mágica deve saber dominar e utilizar sua força de desejar. Mas, para chegar lá, o indivíduo precisa antes conhecer seus verdadeiros desejos e aprender a lidar com eles.
Fez outra pausa, antes de prosseguir.
- Na realidade, basta aprendermos a reconhecê-los, com franqueza e sinceridade, que o resto vem sozinho. Mas não é tão simples assim descobrir nossos desejos próprios e verdadeiros.
- O que é que tem para descobrir? - quis saber Mug. - Quando desejo alguma coisa, eu desejo e pronto. E como! Mas nem por isso sei fazer mágica.
- Foi por isso que falei em desejos verdadeiros - explicou o sr. Prata. - Estes cada um só consegue encontrar quando vive sua própria história.
- Sua própria história? - perguntou Mali. – Por acaso todos têm uma história?
- Não, nem todos, nem todos - o professor suspirou. - Nós, aqui no Reino dos Desejos, ainda temos um pouco de sorte. Mas lá fora, no mundo do dia-a-dia, as pessoas de modo geral não vivem mais sua própria história. Aliás, nem valorizam isso. O que cada um faz qualquer outro poderia fazer, ou o que acontece a cada um poderia acontecer a qualquer outro. Não é assim?
Com estas palavras dirigiu o olhar para mim, que estava sentado lá no último banco. Todas as crianças se voltaram para trás. Balancei a cabeça, concordando envergonhado, e enrubesci.
- É por isso - disse o sr. Prata, retomando seu discurso - que as pessoas nunca conseguem descobrir seus verdadeiros desejos. A maioria pensa que sabe o que deseja. Por exemplo, um indivíduo pode achar que gostaria de ser médico, ou professor, ou um ministro famoso, ao passo que seu verdadeiro desejo, que ele nem suspeita, é apenas ser um simples e bom jardineiro. Outro acha que gostaria de ser rico e poderoso, ao passo que seu verdadeiro desejo é ser palhaço de circo. Muita gente também acha que deseja de verdade que todos os seres humanos do mundo vivam bem, que todos possam estar felizes e satisfeitos, que cada um seja amável com o outro, que a verdade vença e que reine a paz. Muitas dessas pessoas ficariam admiradas se viessem a conhecer seus verdadeiros desejos. Elas só acham que desejam tudo isso porque querem ver a si mesmas como pessoas boas e virtuosas. Mas querer não significa desejar de verdade. Seus desejos verdadeiros com freqüência são muito diferentes, às vezes até exatamente o oposto do que imaginam. Por isso nunca estão totalmente de acordo consigo mesmas. E, como se trata de desejos estranhos de histórias estranhas, elas nunca vivem sua própria história. É por isso que
nunca conseguem fazer mágica.
Mali perguntou, incrédula:
- Isso quer dizer que basta estar de acordo consigo mesmo e conhecer seus verdadeiros desejos para saber fazer mágica?
O sr. Prata confirmou.
- Às vezes nem é preciso fazer nada para que um desejo se realize. Tudo parece encaixar-se direitinho.
As crianças permaneceram algum tempo pensativas. Depois Mug perguntou:
- O senhor sabe fazer mágica de verdade?
- Claro - respondeu o sr. Prata, solenemente -, caso contrário não seria seu professor. Vou lhes ensinar tudo, pois esse é o meu desejo.
- Então - pediu Mali - será que o senhor poderia fazer uma mágica qualquer para nós? Só assim, de brincadeira.
- Cada coisa no seu tempo - disse o sr. Prata. – Isso vai acontecer, mas neste momento não é o que estou desejando.
As crianças ficaram meio decepcionadas.
- Mas o senhor alguma vez já fez mágica de verdade? - indagou Mug, na esperança de pelo menos ouvir uma boa história.
- Claro - retrucou o sr. Prata. - Desejei, por exemplo, que todos vocês viessem à escola, e todos estão aqui.
- Ah, bom - disse Mug, medindo as palavras e trocando um rápido olhar com sua irmã. - E se a gente não tivesse vindo?
Sorrindo, o sr. Prata balançou a cabeça.
- Acontece que vocês vieram.
- Mas viemos de livre e espontânea vontade! - exclamaram todas as crianças.
- Silêncio, por favor! Tenham calma! - o sr. Prata pediu. - É evidente que vocês estão aqui por vontade própria. Pois um bom mágico sempre respeita o livre arbítrio de outras pessoas. Não obriga ninguém a nada. Acontece que os desejos de vocês e o meu se complementaram. Esse é o segredo.
- Mas não existem também desejos maus? – quis saber Mali, preocupada. - E mágicos maus?
O sr. Prata ficou muito sério.
- Esta é uma questão extremamente importante, querida Mali. Você tem razão, também existem mágicos maus, mas são muito raros. Pois um sujeito desse tipo também deve estar totalmente de acordo consigo mesmo, só que na maldade. Isso é uma coisa que quase ninguém consegue. É que, para isso, não se pode amar nada nem ninguém... na realidade, nem a si mesmo. Além disso, alguém assim só tem poder sobre aqueles que não conhecem seus verdadeiros desejos e, portanto, estão em discórdia consigo mesmos. Por isso é tão importante que vocês sejam aplicados e estudem bastante, pois fazer mágica é uma coisa séria, mesmo que se faça apenas para alegrar os outros. Espero que todos tenham entendido.
As crianças calaram-se, pensativas.
- Agora - o sr. Prata prosseguiu -, vou ensinar-lhes a primeira regra, e a mais importante, da força de desejar.
Ele se levantou e escreveu na lousa:
1. Você só pode desejar realmente o que acredita ser possível.
2. Você só pode acreditar que é possível o que faz parte da sua história.
3. Só faz parte da sua história o que você deseja de verdade.
O sr. Prata sublinhou o que tinha escrito e disse:
- Quero que guardem muito bem esta regra e reflitam sobre ela. Mesmo que agora não a estejam entendendo completamente, com o tempo ela se tornará perfeitamente compreensível para vocês.
- Quer dizer então - interveio Mug, agitado - que, se eu achar possível voar, então vou poder voar? É tão simples assim?
O sr. Prata confirmou.
- É, é isso mesmo.
Mug levantou-se de um salto.
- Vou experimentar já! Vou subir no telhado da escola e sair voando.
Correu até a porta, e o sr. Prata não fez menção de retê-lo. Mug hesitou e virou-se para ele.
- E se eu cair?
O sr. Prata tirou os óculos e começou a limpá-los.
- Por acaso você não tem certeza de que voar faça parte de sua verdadeira história? - perguntou, observando-o através das lentes.
- Não faço a menor idéia - admitiu Mug, cabisbaixo.
- Quer dizer que você não considera isso completamente possível, sem qualquer sombra de dúvida? - continuou o sr. Prata.
- Bem... - disse Mug, dando de ombros.
- Então será que você não está de acordo consigo mesmo? - quis saber o sr. Prata. - Talvez na realidade você tenha desejos bem diferentes.
- Pode ser - respondeu Mug.
- Bem, se for assim, você poderá ter uma surpresa meio desagradável, meu caro Mug. É claro que, nesse caso, você não conseguirá; se tentar, cairá e quebrará a perna.
Em matéria de mágica, as coisas não são tão simples assim. Não mesmo! Caso contrário, a escola de mágica seria dispensável, tanto o primeiro grau como o colegial e a universidade. Mas, se você se acha capaz, talvez queira tentar assim mesmo.
- Melhor não -, murmurou Mug, voltando para seu lugar. - É bem mais difícil do que
eu imaginava.
- É bom que você reconheça isso -, disse o sr. Prata, recolocando os óculos. Com isso, por hoje a aula acabou. Até amanhã.
Voltei para casa com Mug e Mali. Os dois caminhavam perdidos em seus
pensamentos, e eu não quis interrompê-los.
Nas três semanas seguintes estive ocupado com outros assuntos. Eu havia sido convidado pelo ministro de Fábulas e Contos de Fada do Reino dos Desejos para fazer um roteiro de visitas através do país, quando tive oportunidade de ver muitas coisas extraordinárias e interessantes. Mas não falarei disso agora. Assim que voltei, fui direto à escola de mágica, para saber o que as crianças já haviam aprendido, até então, especialmente meus amigos Mug e Mali.
A classe estava empolvorosa, tentando executar a última lição, que era fazer coisas se moverem sem tocá-las, apenas pela própria força do desejo. Mug tinha um palito de fósforo diante de si e Mali uma caneta tinteiro; as outras crianças tentavam com agulhas de costura, lápis ou palitos de dente.
O sr. Prata repetia várias vezes o exercício. Fazia, por exemplo, sua cartola flutuar até o cabide e depois voltar à sua cabeça, ou fazia um pedaço de giz escrever sozinho alguma coisa na lousa. Sentadas, as crianças faziam um esforço enorme, até ficarem com as faces afogueadas, mas nada acontecia.
- Talvez vocês não estejam conseguindo estabelecer um verdadeiro contato com as coisas que escolheram - sugeriu o professor. - Tentem um outro objeto.
As crianças trocavam os objetos, tentando com suas borrachas, bonés ou canivetes. Mali colocou uma bola de pingue-pongue à sua frente e Mug se concentrou em um pequeno regador, tentando fazê-lo regar um vaso de flores que estava na janela. Mas foi em vão.
- Vocês devem imaginar com toda força - explicou o sr. Prata - que o objeto faz parte de vocês, assim como seus braços e pernas. Vocês não saberão como conseguem movê-los, simplesmente o farão porque estarão lá dentro. Tentem, em sua imaginação, penetrar no objeto até o sentirem por dentro, como se fosse seu nariz ou seu dedo. Vamos lá, é fácil!
E, como se quisesse provar o que acabava de dizer,fez um caderno voar pela sala de aula, como uma grande borboleta. O caderno voou em torno da cabeça de Mug e lhe deu umas palmadinhas, depois voltou até o sr. Prata. No mesmo instante, o regador pulou para o alto, mas não voou até o vaso. Parou em cima da cabeça do sr. Prata, despejou toda a água e se estatelou no chão.
- Opa! - Mug exclamou, assustado. - Desculpe, professor, não era minha intenção.
A classe toda caiu na gargalhada. Enxugando o rosto com um grande lenço azul, o sr. Prata deu uma risadinha e disse:
- Claro que era, meu caro Mug, caso contrário não teria acontecido. Você apenas não sabe que esse era seu desejo. Não faz mal, não sou feito de açúcar, mas fico contente, pois finalmente você conseguiu chegar ao princípio. Como vocês vêem, é preciso ter muito cuidado quando se trata de fazer mágica.
Não sei como se explica, mas a partir do sucesso inicial de Mug todas as crianças, uma depois da outra, foram descobrindo como a coisa funcionava. Logo começaram a flutuar pela sala de aula todos os objetos imagináveis. Uma semana depois pude certificar-me de que todas as crianças eram capazes, por meio de um ligeiro gesto com a mão ou apenas pela força do olhar, não só de movimentar objetos pequenos, como lápis ou bolas de pingue-pongue, mas também de fazer mesas e cadeiras saírem andando ou de fazer um armário levitar. Explicaram-me que o peso não interferia em nada.
Muitas vezes, para a alegria de seus pais, Mug e Mali exercitavam sua nova habilidade, como se fosse lição de casa, pondo e tirando a mesa das refeições, usando apenas a força de seu desejo. Facas, garfos, colheres e pratos marchavam em fila até a sala de jantar ou se retiravam para a cozinha, onde se lavavam e se enxugavam sozinhos. Claro que isso era muito prático para os pais, que estavam orgulhosíssimos
dos gêmeos.
A segunda lição, contudo, foi bem mais difícil, e algumas crianças precisaram de um mês para ver seus esforços compensados. A tarefa consistia em chamar e fazer aparecer objetos que não estavam diante dos olhos, mas se encontravam a uma distância mais ou menos grande.
O sr. Prata trouxe para a aula um pequeno imã e um saquinho cheio de limalha de ferro, que ele despejou e espalhou cuidadosamente numa folha de papel.
- Aqui vocês estão vendo apenas um pouco de limalha de ferro, espalhada sem nenhuma ordem - ele explicou. - Agora, prestem atenção!
O professor segurou o imã debaixo do papel e imediatamente a limalha de ferro formou um determinado desenho.
- Vejam - ele disse -, à sua frente havia um objeto, o imã, que conduziu a força do desejo de vocês numa direção determinada. Mas, agora que o objeto se encontra em outro lugar, vocês devem conseguir fazer isso com sua própria força. Para isso, era necessário imaginarmos o objeto tão nitidamente como se ele estivesse à nossa frente. Nada deveria nos distrair e ninguém poderia pensar em mais nada. Cada detalhe, por menor que fosse, era muito importante, caso contrário a experiência falharia. Ou então, por descuido, poderia aparecer algo totalmente diferente do esperado. Foi o que aconteceu certa vez com Mali. Durante a aula ela sentiu fome e, em vez de invocar suas sandálias, como deveria, viu-se de repente com
o lanche grudado nos pés.
Em primeiro lugar as crianças precisaram exercitar-se com objetos bem conhecidos, de seu uso diário,como pentes, cintos ou bonés. No princípio, colocavam essas coisas na sala ao lado; depois, diante do prédio da escola e, à medida que progrediam, cada vez mais longe. Voltavam então à sala de aula e passavam a desejar que suas coisas voltassem para perto delas.
Quando finalmente todos os alunos conseguiram realizar essa tarefa, o sr. Prata passou a ensiná-los a invocar coisas que ainda não conheciam e que nem sabiam onde estavam. Para isso eles precisavam ter um retrato, que deveriam registrar muito bem na memória, ou apenas uma descrição, que tornava a tarefa mais difícil ainda. Eram coisas como, por exemplo, uma flor que crescia numa certa montanha, ou uma determinada pedra no fundo de um lago, ou até um anel valioso que fazia parte de um tesouro enterrado. O mais difícil de tudo era desejar que tudo isso voltasse, depois, ao devido lugar. O sr. Prata, sempre muito paciente e alegre, tornava-se sério e enérgico ao falar de princípios dos quais não abria mão:
- Só os incompetentes e desonestos se apropriam do que não precisam realmente e
trazem desordem ao mundo.
Ele explicava que os alunos que infringissem essa norma não conseguiriam progredir e, portanto, seriam obrigados a abandonar a escola. Claro que nenhuma das crianças queria isso e, assim, todas se esforçavam ao máximo para fazer tudo certo.
Como eu já disse, durante esses exercícios os alunos não permaneciam o tempo todo no prédio da escola e, às vezes, até se afastavam bastante dele.
Acompanhei-os em algumas excursões e fiquei conhecendo lugares muito bonitos do Reino dos Desejos. Muitas vezes, porém, tinha meus próprios compromissos, e por isso não posso dizer que tenha visto pessoalmente os alunos sempre devolverem aos devidos lugares o que deslocavam por meio de sua mágica. No entanto, como o sr. Prata estava satisfeito com os resultados, suponho que isso tenha ocorrido.
O outono havia chegado ao Reino dos Desejos. Soprava um vento forte e chovia quase todos os dias. Como me resfrio facilmente, eu preferia ficar em casa.
Além disso, tinha recebido do diretor da Biblioteca do Reino a incumbência de redigir um relatório detalhado sobre desejos sonhados no mundo do dia-a-dia. Embora esse trabalho melancólico não fosse bem do meu agrado, não pude rejeitá-lo, já que era hóspede do país. A lição seguinte, portanto, só conheço através dos relatos de Mug e Mali, que toda noite me contavam sobre seus progressos na escola de magia.
A lição seguinte do sr. Prata foi sobre a arte de transformar uma coisa em outra. Pelo que pude entender, a tarefa exigia a construção de uma "ponte mágica", por assim dizer. Era preciso descobrir o que uma coisa tinha em comum com outra, o que as tornava semelhantes. Através dessa tal "ponte", e por meio da força do desejo, deveria realizar-se a transformação.
Transformar uma maçã em bola era relativamente fácil. Qualquer um logo percebe que as duas têm forma esférica, o que já manifesta claramente sua íntima semelhança.
Era um pouco mais complicado, por exemplo, transformar um garfo em maçã. Nesse caso, o raciocínio era o seguinte: um garfo sempre será um garfo, seja grande ou pequeno. Também não importa que seja de ferro ou de madeira, pois sempre será um garfo. Acontece que existem "garfos" de madeira de todos os tamanhos, em todas as ramificações de árvores; na verdade, pode-se dizer que uma árvore nada mais é que um grande garfo cheio de dentes. Isso também se aplica à macieira. Seu fruto, a maçã, aparentemente nada mais é que uma pequena parte da macieira; no entanto, em cada semente de maçã se encontra uma macieira inteira. Sendo assim, podemos afirmar: uma maçã é um garfo. E, sendo assim, o contrário também é verdadeiro: um garfo é uma maçã. Usando-se corretamente a força mágica do desejo, pode-se transformar uma coisa em outra através dessa ponte.
Nesse exemplo a ponte ainda é relativamente curta, chega-se rapidamente de um objeto a outro. No entanto existem contextos muito mais complicados, que muitas vezes exigem vinte, cinqüenta, às vezes até mais de cem elos intermediários. Mug e Mali ficavam dias inteiros quebrando a cabeça para conseguir realizar certas tarefas.
Quem não acredita, que tente encontrar sozinho a ponte mágica entre uma máquina de costura e um aquário com peixinho dourado, entre um coco e uma sanfona, ou entre chinelos e óculos escuros.
Certa noite, Mali me disse, toda entusiasmada:
- Sabe o que é mais sensacional nisso tudo? É que em todo o Reino dos Desejos, provavelmente no mundo todo, não existem duas coisas que, de um modo ou de outro, não tenham algum tipo de relação. Tudo está misteriosamente ligado, e por isso é possível transformar tudo em tudo... quer dizer, se soubermos como fazer.
- Isso acontece - acrescentou Mug, com cara de sabichão - porque na verdade tudo é uma coisa só. Pelo menos foi o que o sr. Prata disse.
Passei a refletir muito sobre isso e, honestamente, até hoje ainda não cheguei a uma
conclusão.
A lição seguinte, a quarta, pelo visto todas as crianças conseguiram realizar com bastante rapidez. As aptidões aprendidas até então deveriam ser aplicadas não mais a objetos, mas à própria pessoa. Quando voltei a dar uma passada pela escola, uma semana depois, observei como todos os alunos estavam ocupados em deslocar-se de um lugar para outro e voltar no mesmo instante.
É verdade que nessa ocasião ocorreu um incidente desagradável, desta vez
envolvendo meu pobre amigo Mug.
Nesse exercício cada um precisava imaginar exatamente e em todos os detalhes o lugar para o qual se deslocaria. Mug tinha escolhido seu canto predileto na floresta, mas esqueceu-se de imaginar uma das muitas árvores que havia ali. Ao desejar se deslocar para lá, trombou com tanta força nessa árvore, que viu estrelas e caiu no chão, atordoado. Ele demorou bastante para voltar, o sr. Prata já estava começando a se preocupar seriamente. Finalmente Mug apareceu, com um galo enorme na testa e um olho roxo, que permaneceram por umas duas semanas, apesar das compressas de ervas que sua mãe lhe aplicava. Esse incidente pelo menos lhe serviu de lição, e todos os seus colegas também passaram a tomar mais cuidado.
Um outro exercício da quarta lição era voar. Não é a mesma coisa deslocar-se num piscar de olhos para um lugar qualquer, sem ter que percorrer um trajeto, ou deslizar como um pássaro pêlos ares. Do mesmo modo como antes tinham aprendido a erguer coisas no ar e fazê-las flutuar, os alunos agora tentavam fazer o mesmo com eles próprios. Antes de alçar vôo, era preciso respirar num determinado ritmo, depois prender um pouco a respiração, erguer os cotovelos para os lados e, batendo os braços como se fossem asas, desprender-se lentamente do chão. Já no ar, podia-se esticar os braços e dirigir o vôo com movimentos precisos das mãos. Tudo isso exigia um certo treino. No início, quase todas as crianças davam cambalhotas no ar, pois se agitavam demais. Assim, os primeiros exercícios foram feitos na sala de aula, até os alunos conseguirem decolar com segurança até o teto, sem bater em nenhum lugar. Só depois disso as aulas passaram a ser ministradas ao ar livre. Lá era bem mais difícil, pois, como já disse, era quase inverno e ventava muito. Uma rajada de vento, por mais fraca que fosse, podia tirar uma criança da sua rota e soprá-la para outro lugar, pois não havia nada que a segurasse. Exatamente isso parecia divertir mais ainda as crianças, que gritavam e berravam, rodopiando como se estivessem numa montanha russa invisível. O sr. Prata, que evidentemente voava com elas, procurava em vão chamar sua atenção e fazê-las voltar à ordem. Só depois que alguns alunos trombaram dolorosamente ou ficaram presos nas copas das árvores, todos se acalmaram e passaram a treinar com seriedade e disciplina.
Minha estada no Reino dos Desejos estava se aproximando do fim. Certa noite, o sr. Prata foi me visitar. Ele nunca tinha feito isso antes, portanto presumi que o motivo daquela visita fosse muito importante. A pedido do professor, fomos para meu quarto, para ficarmos a sós.
- Logo o senhor voltará ao mundo do dia-a-dia, caro amigo - ele começou a falar -, e suponho que vá contar sobre a nossa escola, não é verdade?
- De fato - concordei -, eu pretendia escrever alguma coisa sobre ela.
- Bem - continuou o sr. Prata -, não tenho nada contra, aliás, provavelmente foi para isso que veio até aqui. É claro que o senhor continua sendo nosso convidado para observar nossas aulas durante o tempo que ainda permanecer aqui, mas eu gostaria de lhe pedir um enorme favor.
- O que é? - perguntei.
- Nos exercícios das próximas lições - disse o sr. Prata -, o senhor poderá descrever à vontade o que as crianças aprendem, mas, por favor, não dê nenhuma indicação de como o fazem.
- Por quê? - eu quis saber. - Pois é exatamente isso que mais interessaria a meus leitores.
- Veja, meu caro - retrucou pensativo o sr. Prata -, nunca se sabe em que mãos o seu relato poderá cair. Durante os exercícios das nossas crianças estou sempre presente, para garantir que tudo corra bem e que não aconteça nenhum dano. No entanto, pode ser que entre seus leitores haja pessoas irresponsáveis, levianas ou fracas de caráter, que não conseguiriam resistir à tentação de experimentar um ou outro truque. Isso poderia ter conseqüências desastrosas, não só para essas pessoas como também para outras.
Sorri.
- Não se preocupe, caro mestre - tentei acalmá-lo -, seja como for, para nós do mundo do dia-a-dia a sua mágica não funciona, de jeito nenhum. Além disso, a maioria dos meus leitores nem vai acreditar no que vou escrever.
- Mesmo assim - insistiu o sr. Prata -, pode ser que o senhor esteja enganado. Portanto, por favor, faça o que estou pedindo.
- Se isso o tranqüiliza - respondi, hesitante.
- Promete? - ele perguntou.
- Está bem, prometo.
Essa promessa devo cumprir agora, embora não tenha tanta certeza de que seja necessário. Daqui para a frente contarei apenas o que as crianças aprenderam, porém não mais como o faziam.
A quinta lição consistia em tornar-se invisível. Nesse estado, além de se poder ir a qualquer lugar sem ser notado, era possível também, como nas lições anteriores, deslocar-se à vontade para qualquer lugar ou sair flutuando no ar. Mais do que isso, dava para atravessar portas fechadas e muros, como se atravessa neblina. Quando Mug e Mali finalmente conseguiram dominar essa técnica, eles me contaram que a invisibilidade também tinha uma desvantagem. Quem ficava invisível enxergava as coisas à sua volta com pouca nitidez, como se estivesse olhando tudo através de véus coloridos.
Assim, não era possível ler uma carta ou um livro; para isso, era preciso voltar a ser visível. Esse estado também provocava uma sensação desagradável em todo o corpo, além de acarretar um sério perigo. Se alguém se tornasse visível por engano, por exemplo, enquanto estivesse atravessando um muro largo, uma rocha ou algo parecido, ficaria irremediavelmente preso lá dentro.
Porém isso não aconteceu com as crianças, pois o sr. Prata estava ali para cuidar delas. Em todo caso, comecei a entender que a promessa que o professor me obrigara a fazer tinha um certo fundamento. Embora eu continue tendo certeza de que essas coisas são impossíveis no nosso mundo do dia-a-dia, fico arrepiado só de pensar no que poderia acontecer. Seja como for, na última semana da minha permanência no Reino dos Desejos acabei me convencendo totalmente da necessidade de determinadas medidas de segurança. Aconteceu então uma tragédia que quase fez Mug e Mali serem reprovados. Mas vou contar desde o começo.
A sexta e a sétima lições de certo modo se confundiam, embora quanto às dificuldades as duas fossem bem diferentes. Nos dois casos, tratava-se de criar. A sexta lição envolvia a criação de coisas; a sétima e última lição do ano letivo referia-se à criação de seres animados. É isso mesmo, os alunos de magia do Reino dos Desejos já aprendem na escola primária a imaginar coisas e seres que nunca existiram em lugar
nenhum, tornando-os reais por meio da força de desejo.
Assim como nós pintamos, desenhamos ou fazemos modelagem, Mug e Mali se exercitavam em criar coisas a partir do nada, ou melhor, a partir de sua fantasia. Como nas lições anteriores, também agora era da maior importância cada um imaginar os mínimos detalhes do objeto, como se ele estivesse à sua frente. Só que agora se tratava de uma imagem completamente nova, que não existia nem na lembrança.
No início as crianças realizavam esse exercício muito devagar, permaneciam de uma a duas horas em total concentração, para condensar as idéias mais simples até se tornarem visíveis. Algumas coisas se materializavam apenas pela metade, ficavam incompletas: metade de uma boneca, um cachimbo sem cabo, uma bicicleta sem rodas... Depois de uns dias, no entanto, Mali chegou ao ponto de conseguir criar um copo enorme de suco de amora, que dava para beber de verdade, em pouco menos de quinze minutos. A partir daí, todos progrediram rapidamente. Mais uma semana e Mug foi capaz de fazer aparecer em onze minutos uma locomotiva inteira, que bufava e soltava fumaça, em plena sala de aula. Todos tossiram e quase se asfixiaram, até ele conseguir fazer a máquina desaparecer de novo. Apesar desse incidente, dava gosto ficar vendo o que as crianças produziam: caixinhas de música e lampiões, patins de gelo e aquecedores, armaduras de cavaleiros e lunetas, chapéus de caubói e fogos de artifício... Simplesmente tudo!
A sétima e última lição, a criação de seres vivos, era muito mais difícil e demorada. Mali precisou de dois dias inteiros para sua primeira obra, um lindo peixinho colorido que brilhava no escuro e nadava num aquário. A menina ficou tão orgulhosa e gostou tanto da sua criação, que só a muito custo fez o peixinho desaparecer novamente. Mas o sr. Prata tinha deixado muito claro para ela e para todos os outros alunos que era de extrema importância, e uma questão de responsabilidade, sempre fazer desaparecer tudo o que fosse criado, principalmente quando se tratava de seres vivos. O professor explicava que uma criatura daquelas, assim que se tornasse independente, poderia provocar efeitos imprevisíveis sobre a evolução da história de seu criador. E isso só poderia acontecer se fosse absolutamente necessário e, principalmente, muito bem pensado.
- Lembrem-se: toda criatura modifica seu criador - ele repetia sempre.
Embora as crianças parecessem ter opiniões muito próprias sobre a importância desse ponto, não se manifestavam, e, obedientes, submetiam-se às instruções do professor.
Mug e Mali tinham iniciado uma espécie de competição, procurando um superar o outro com suas idéias. Nos dias que se seguiram, a menina produziu uma espécie de ave do paraíso, maravilhosa de se ver e que sabia assobiar o hino nacional do Reino dos Desejos; o menino criou um pequeno animal fabuloso, semelhante a um cavalinho miniatura, roxinho, de pêlo brilhante como seda e que, quando alguém perguntava, indicava as horas batendo com o casco no chão. Em seguida, Mali inventou um cogumelo pulador e tocador de trombeta, e Mug fez um homenzinho de duas cabeças, que ficou o tempo todo brigando e reclamando da vida, até a magia ser desfeita. Finalmente Mali criou uma mulherzinha marionete, quase do seu tamanho, que sabia dançar bale e que chorou amargamente quando soube que deveria desaparecer novamente; e Mug inventou um duende mecânico, que afirmava com todas as letras ser o verdadeiro Mug e até ameaçava fazer o menino desaparecer se ele continuasse a contradizê-lo. Obviamente Mug não se intimidou e deu sumiço no duende.
Veio então aquela tarde fatídica, último dia da minha estada no Reino dos Desejos.
O inverno havia chegado e a neve cobria tudo. Para poder desfrutar pela última vez a beleza da paisagem, saí para dar um passeio de esqui. Percorri a margem do rio congelado e fui parar num bosque. Ao iniciar a descida de uma colina, sofri uma queda tão infeliz que torci o tornozelo. Doía terrivelmente e, a cada tentativa de apoiar o pé, a dor aumentava. Percebi que não conseguiria chegar sozinho à pensão. Gritei, gritei, o mais alto que pude, mas era uma região erma e ninguém me ouviu. A tarde foi caindo e o frio se tornava mais intenso, congelando-me até os ossos. O sono queria me vencer, mas lutei contra ele, pois sabia que, se adormecesse, estaria perdido.
Olhei para o céu, que rapidamente ia se cobrindo com um véu rosa-avermelhado.
De repente, avistei duas figuras minúsculas, sobrevoando o bosque de um lado para o outro, como se estivessem à procura de alguma coisa. Acenei e berrei com todas as forças, e, finalmente, os dois lá em cima me notaram, aproximaram-se rapidamente e desceram perto de mim. Eram meus dois jovens amigos Mug e Mali. Devo confessar que nunca na vida apreciei tanto a companhia de crianças como naquele momento.
Rapidamente contei-lhes qual era a minha situação e os gêmeos me disseram que tinham imaginado, de fato, que alguma coisa acontecera comigo, por isso tinham saído à minha procura.
- Se você quiser - sugeriram - podemos levá-lo para casa já.
- Mas como? - indaguei.
- Ora, pelo ar, assim como viemos. Juntos, nós dois conseguimos.
Sofro de vertigens e, diante da simples idéia de estar voando lá no alto, muito acima do chão, seguro apenas por quatro mãos de criança, comecei a transpirar de medo, apesar de todo o frio.
- Será que não existe outro jeito? - atrevi-me a perguntar, desanimado.
- Claro - disse Mali depois de pensar um pouco -, vou fazer aparecer uma montaria para você.
- Deixe comigo - ponderou Mug -, sei fazer isso melhor do que você.
- O que está querendo dizer? - quis saber Mali, colocando as mãos desafiadoramente na cintura. – Melhor do que eu?
- Estou querendo dizer que você ia levar séculos para fazer uma montaria - Mug respondeu.
- Por acaso está afirmando que seria capaz de fazer mais depressa do que eu?
- Estou, sim, cara irmãzinha!
- Nem você acredita nisso!
- Pois tenho certeza!
- Presunção e água benta cada qual toma a contento.
- Presunçosa é você!
Os gêmeos começaram um bate-boca que, se eu bem os conhecia, poderia levar horas sem resultar em nada. E meu pé doía insuportavelmente.
- Ouçam - gemi -, será que não dá para vocês fazerem uma mágica juntos? - (ai, meu Deus, eu nunca deveria ter dito isso!)
Os dois pararam de discutir e me fitaram, surpresos.
- Não é má idéia - considerou Mug.
- Será que dá? - objetou Mali. - Até hoje nunca fizemos uma obra conjunta.
- Talvez a dois seja duas vezes mais rápido.
- Está bem, vamos tentar.
Os dois fecharam os olhos para se concentrar.
- Deve ser um cavalo - Mali murmurou.
- É, e bem grande e forte - Mug acrescentou -, para poder carregar os três.
- Talvez com asas, ou algo assim - Mali sugeriu -, para dar mais velocidade.
- Bom, e de que cor?
- Uma cor escura!
- Não, clara!
- Tanto faz, o importante é que seja fogoso.
- Você está pronta? - perguntou Mug.
- Ainda falta um pouco.
- Vamos logo, sua molenga!
- Estou pronta.
- Então vamos lá!
Fez-se silêncio por alguns minutos. As crianças estavam sentadas a meu lado, na neve, com os olhos fechados e os punhos cerrados. Percebia-se que faziam um esforço tremendo. De repente, um barulho medonho nos fez estremecer. Parecia o som de um berro trovejante e de um grito agudo ao mesmo tempo. Mug e Mali arregalaram os olhos, voltei-me com dificuldade. A poucos metros de nós encontrava-se uma criatura como eu nunca tinha visto na vida.
Era realmente enorme e disforme como um hipopótamo, do tamanho de um elefante. Seu pelame era xadrez, preto e branco. Na pressa, meus amigos tinham esquecido a cauda e a crina. Na cabeça quadrada brilhavam dois olhos enormes como faróis, sem pupilas, parecendo bolas de fogo. Tinha uma orelha só, no lugar da outra havia um buraco. Nas costas estavam grudadas duas asinhas ridículas, transparentes como asas de mosca ou de libélula. O monstro, depois de bater no chão com suas patas grossas como salsichões, empinou. Podia-se ver, então, que seu pelame se abotoava na barriga, como um casaco apertado. Bufava pelas narinas do tamanho de um balde, expelindo duas labaredas vermelho-azuladas. Em seguida, escancarou a bocarra e gritou mais uma vez (não se podia chamar aquilo de relinchar). A tal criatura
não tinha dentes nem língua.
- A culpa é sua - sussurrou Mali.
- Ou sua - respondeu Mug com raiva. - Mas agora tanto faz. O que importa é que nos leve para casa.
- O quê? - perguntei, batendo os dentes. – Vocês acham que vou montar nisso aí?
- Infelizmente vai ser preciso - disse Mali. – Agora não temos outra escolha e, afinal, é melhor do que nada.
- Venha, faça um esforço - Mug tentou animar-me. - Coragem, amigão.
Só que não deu muito certo. Quando Mug se aproximou do monstro para montá-lo, este refugou, batendo com as patas dianteiras como se quisesse atingi-lo. Embora não tivesse cascos, o som foi de dois bate-estacas esmagando o chão.
Mug ficou visivelmente assustado, mas esforçou-se para aparentar calma.
- Ei, sua besta, trate de obedecer! - gritou zangado, mas com a voz trêmula. - trouxemos você para cumprir uma tarefa. Se não fizer tudo direitinho vamos fazê-lo desaparecer imediatamente.
Quando aquela coisa disforme ouviu essas palavras, soltou um berro ao mesmo tempo terrível e aflito e saiu em disparada, espalhando neve por todos os lados. Tentava levantar vôo com suas asas minúsculas, mas só conseguia dar uns pulos. Por algum tempo ouvimos os estalos das árvores e arbustos através dos quais o monstrengo abria caminho, depois tudo ficou em silêncio.
- Volte! - gritavam Mug e Mali. - Volte imediatamente!
Tudo em vão. A infeliz criatura não obedecia. Eles haviam criado um monstro, que se ornara independente e seguiria seu próprio caminho. Mug e Mali ficaram se entreolhando demoradamente, preocupados.
- O que o sr. Prata vai dizer disso tudo? – murmurou o menino.
A menina só deu um longo e sentido suspiro.
Honestamente, já não lembro bem como consegui, mesmo assim, chegar à pensão. Eu já estava meio congelado e quase sem sentidos. Acho que os gêmeos, apesar de meus protestos, levaram-me voando pêlos ares, pois tenho vagas lembranças de imagens indistintas, em que me vejo suspenso numa altura estonteante, por cima de uma paisagem noturna de inverno, com alguém me segurando pela gola do casaco.
Depois disso, devo ter tido febre por vários dias, meu pé ficou dormente e insensível. Quando finalmente tudo passou, vi-me de novo em minha cama no mundo do dia-a-dia. Alguém deve ter dado um jeito de me transportar do Reino dos Desejos de volta para cá.
Minha primeira providência foi sentar e escrever uma carta ao sr. Rosmarino Prata, narrando tudo o que tinha acontecido. Sentia-me de alguma maneira co-responsável, pois na verdade meus dois amigos tinham provocado toda aquela desgraça por minha causa. Assim, fiquei muito aliviado quando, duas semanas depois, recebi a resposta do professor, comunicando que o assunto já tinha sido resolvido. Mug e Mali quase tinham sido reprovados, mas, em vista das circunstâncias especiais e de seu talento excepcional, decidiu-se deixá-los passar de ano. O professor, pessoalmente, tinha saído à caça do produto disforme da mágica em dupla e, com a ajuda dos dois alunos, fizera-o sumir, o que, aliás, também foi a melhor solução para a criatura deplorável. Mug e Mali tinham amadurecido muito com a experiência e me mandavam muitas
lembranças.
Com esta boa notícia quero também encerrar meu relato. Tudo isso, como foi dito no início, aconteceu há muitos anos. Meus dois jovens amigos já freqüentam a Universidade de Magia. Aliás, para evitar qualquer mal-entendido, quero acrescentar que eu mesmo não aprendi a fazer mágica nessa viagem. É verdade, nem um pouquinho! Mas também não nasci no Reino dos Desejos...
Há muito tempo, bem antes de a maioria de vocês ter vindo ao mundo, numa das minhas inúmeras e longas viagens, fui dar nessa terra lendária (como já disse, com um convite oficial, é claro). Para poder estudar a fundo os usos e costumes de seus habitantes, fiquei lá por algum tempo, e então conheci duas crianças, com as quais fiz amizade. Eram irmãos gêmeos: um menino chamado Mug e uma menina chamada Amalasvinta - para facilitar, todos a chamavam de Mali. Eles tinham aproximadamente nove anos, olhos azuis e cabelos pretos. Mug usava corte escovinha e Mali usava franja. Eram filhos dos donos da pensão onde eu tinha alugado um quarto. Era uma família muito simpática. As crianças eram muito gentis e me ajudavam em meus estudos, na medida do possível. Assim, de vez em quando eu tinha permissão para
assistir às aulas delas na escola. Na maioria das vezes eu me sentava no fundo da sala, na última carteira, e ficava apenas ouvindo em silêncio, para não atrapalhar.
Aliás, não é qualquer criança que pode freqüentar uma escola desse tipo, mas aquelas especialmente dotadas, isto é, que tenham uma força de desejo fora do comum. Geralmente, todas as crianças têm a capacidade de desejar muito uma coisa ou outra, só que quase sempre isso dura pouco e logo elas esquecem. Para poder ir à escola de magia, é preciso ter a capacidade de desejar ardentemente e com muita perseverança. Por isso, as crianças passam por um exame de seleção.
Na classe que conheci havia sete alunos, mas não quero apresentar agora os outros cinco, pois demoraria muito. Aliás, como fiquei sabendo mais tarde, o número de alunos em cada classe tinha de ser sempre ímpar e menor do que dez, portanto, no mínimo três e no máximo nove. Quando havia mais de nove crianças matriculadas, era formada uma classe suplementar; quando havia número par de matrículas, esperava-se até aparecer mais uma. Nunca fiquei sabendo por que era assim.
O professor se chamava Rosmarino Prata. Era um senhor gordinho, de idade indefinida, que usava uns óculos pequenos no nariz e uma cartola azul-celeste na cabeça. Estava quase sempre com um sorriso matreiro nos lábios e parecia difícil que alguma coisa pudesse perturbá-lo.
Quando ele chegou na sala de aula, no primeiro dia, todos os alunos já se encontravam em seus lugares (eu, como disse, lá no fundo), olhando-o, ansiosos. O professor se apresentou, cumprimentou-os e perguntou-lhes seus nomes, como também é costume entre nós. Em seguida, sentou-se em sua poltrona, perto da lousa, cruzou os dedos por cima da barriga e fechou os olhos.
- Por favor, sr. Prata - perguntou Mug, já impaciente e em tom meio atrevido -, quando vamos começar a fazer mágicas?
Como o professor continuava calado, ele repetiu a pergunta em voz mais alta. O sr. Prata abriu os olhinhos e fitou-o pensativo através dos óculos. Com um sorriso, respondeu:
- Não precisa gritar, meu filho, não sou surdo. Tenham um pouco de paciência, pois preciso explicar-lhes uma coisa muito importante e estou pensando em como fazê-lo.
Depois de ficar mais um tempo calado, ele disse:
- Então vocês todos estão aqui porque querem aprender a fazer mágica, não é? Pois quero que me contem como imaginam que isso seja.
Mali levantou a mão:
- Eu acho que vou precisar decorar uma porção de palavras e fórmulas mágicas, talvez também alguns gestos e sinais para fazer com as mãos.
Um outro menino disse:
- Talvez seja necessário aprender a usar uma porção de aparelhos, como retortas ou seja o que for, e também vidros especiais de conservas...
- E todo tipo de ervas, pós e outros produtos - exclamou uma menina.
- Uma varinha mágica! - sugeriu outra.
- Ou livros secretos - sugeriu um menino -, que só podem ser decifrados quando se conhece a chave dos códigos.
- Uma espada mágica! - exclamou Mug, entusiasmado.
- E talvez um manto longo e bonito - sonhava Mali -, de veludo azul, bordado de estrelas, e um chapéu alto e pontudo...
- Mas isso tudo - interrompeu o sr. Prata - são apenas recursos externos, importantes para uns, mas não para outros. O que é necessário, de fato, é bem mais simples e, ao mesmo tempo, bem mais difícil. Está dentro de vocês mesmos.
Todos se calaram, perplexos.
- Pois bem, é a força de desejar - prosseguiu o sr. Prata. - Quem pretende fazer mágica deve saber dominar e utilizar sua força de desejar. Mas, para chegar lá, o indivíduo precisa antes conhecer seus verdadeiros desejos e aprender a lidar com eles.
Fez outra pausa, antes de prosseguir.
- Na realidade, basta aprendermos a reconhecê-los, com franqueza e sinceridade, que o resto vem sozinho. Mas não é tão simples assim descobrir nossos desejos próprios e verdadeiros.
- O que é que tem para descobrir? - quis saber Mug. - Quando desejo alguma coisa, eu desejo e pronto. E como! Mas nem por isso sei fazer mágica.
- Foi por isso que falei em desejos verdadeiros - explicou o sr. Prata. - Estes cada um só consegue encontrar quando vive sua própria história.
- Sua própria história? - perguntou Mali. – Por acaso todos têm uma história?
- Não, nem todos, nem todos - o professor suspirou. - Nós, aqui no Reino dos Desejos, ainda temos um pouco de sorte. Mas lá fora, no mundo do dia-a-dia, as pessoas de modo geral não vivem mais sua própria história. Aliás, nem valorizam isso. O que cada um faz qualquer outro poderia fazer, ou o que acontece a cada um poderia acontecer a qualquer outro. Não é assim?
Com estas palavras dirigiu o olhar para mim, que estava sentado lá no último banco. Todas as crianças se voltaram para trás. Balancei a cabeça, concordando envergonhado, e enrubesci.
- É por isso - disse o sr. Prata, retomando seu discurso - que as pessoas nunca conseguem descobrir seus verdadeiros desejos. A maioria pensa que sabe o que deseja. Por exemplo, um indivíduo pode achar que gostaria de ser médico, ou professor, ou um ministro famoso, ao passo que seu verdadeiro desejo, que ele nem suspeita, é apenas ser um simples e bom jardineiro. Outro acha que gostaria de ser rico e poderoso, ao passo que seu verdadeiro desejo é ser palhaço de circo. Muita gente também acha que deseja de verdade que todos os seres humanos do mundo vivam bem, que todos possam estar felizes e satisfeitos, que cada um seja amável com o outro, que a verdade vença e que reine a paz. Muitas dessas pessoas ficariam admiradas se viessem a conhecer seus verdadeiros desejos. Elas só acham que desejam tudo isso porque querem ver a si mesmas como pessoas boas e virtuosas. Mas querer não significa desejar de verdade. Seus desejos verdadeiros com freqüência são muito diferentes, às vezes até exatamente o oposto do que imaginam. Por isso nunca estão totalmente de acordo consigo mesmas. E, como se trata de desejos estranhos de histórias estranhas, elas nunca vivem sua própria história. É por isso que
nunca conseguem fazer mágica.
Mali perguntou, incrédula:
- Isso quer dizer que basta estar de acordo consigo mesmo e conhecer seus verdadeiros desejos para saber fazer mágica?
O sr. Prata confirmou.
- Às vezes nem é preciso fazer nada para que um desejo se realize. Tudo parece encaixar-se direitinho.
As crianças permaneceram algum tempo pensativas. Depois Mug perguntou:
- O senhor sabe fazer mágica de verdade?
- Claro - respondeu o sr. Prata, solenemente -, caso contrário não seria seu professor. Vou lhes ensinar tudo, pois esse é o meu desejo.
- Então - pediu Mali - será que o senhor poderia fazer uma mágica qualquer para nós? Só assim, de brincadeira.
- Cada coisa no seu tempo - disse o sr. Prata. – Isso vai acontecer, mas neste momento não é o que estou desejando.
As crianças ficaram meio decepcionadas.
- Mas o senhor alguma vez já fez mágica de verdade? - indagou Mug, na esperança de pelo menos ouvir uma boa história.
- Claro - retrucou o sr. Prata. - Desejei, por exemplo, que todos vocês viessem à escola, e todos estão aqui.
- Ah, bom - disse Mug, medindo as palavras e trocando um rápido olhar com sua irmã. - E se a gente não tivesse vindo?
Sorrindo, o sr. Prata balançou a cabeça.
- Acontece que vocês vieram.
- Mas viemos de livre e espontânea vontade! - exclamaram todas as crianças.
- Silêncio, por favor! Tenham calma! - o sr. Prata pediu. - É evidente que vocês estão aqui por vontade própria. Pois um bom mágico sempre respeita o livre arbítrio de outras pessoas. Não obriga ninguém a nada. Acontece que os desejos de vocês e o meu se complementaram. Esse é o segredo.
- Mas não existem também desejos maus? – quis saber Mali, preocupada. - E mágicos maus?
O sr. Prata ficou muito sério.
- Esta é uma questão extremamente importante, querida Mali. Você tem razão, também existem mágicos maus, mas são muito raros. Pois um sujeito desse tipo também deve estar totalmente de acordo consigo mesmo, só que na maldade. Isso é uma coisa que quase ninguém consegue. É que, para isso, não se pode amar nada nem ninguém... na realidade, nem a si mesmo. Além disso, alguém assim só tem poder sobre aqueles que não conhecem seus verdadeiros desejos e, portanto, estão em discórdia consigo mesmos. Por isso é tão importante que vocês sejam aplicados e estudem bastante, pois fazer mágica é uma coisa séria, mesmo que se faça apenas para alegrar os outros. Espero que todos tenham entendido.
As crianças calaram-se, pensativas.
- Agora - o sr. Prata prosseguiu -, vou ensinar-lhes a primeira regra, e a mais importante, da força de desejar.
Ele se levantou e escreveu na lousa:
1. Você só pode desejar realmente o que acredita ser possível.
2. Você só pode acreditar que é possível o que faz parte da sua história.
3. Só faz parte da sua história o que você deseja de verdade.
O sr. Prata sublinhou o que tinha escrito e disse:
- Quero que guardem muito bem esta regra e reflitam sobre ela. Mesmo que agora não a estejam entendendo completamente, com o tempo ela se tornará perfeitamente compreensível para vocês.
- Quer dizer então - interveio Mug, agitado - que, se eu achar possível voar, então vou poder voar? É tão simples assim?
O sr. Prata confirmou.
- É, é isso mesmo.
Mug levantou-se de um salto.
- Vou experimentar já! Vou subir no telhado da escola e sair voando.
Correu até a porta, e o sr. Prata não fez menção de retê-lo. Mug hesitou e virou-se para ele.
- E se eu cair?
O sr. Prata tirou os óculos e começou a limpá-los.
- Por acaso você não tem certeza de que voar faça parte de sua verdadeira história? - perguntou, observando-o através das lentes.
- Não faço a menor idéia - admitiu Mug, cabisbaixo.
- Quer dizer que você não considera isso completamente possível, sem qualquer sombra de dúvida? - continuou o sr. Prata.
- Bem... - disse Mug, dando de ombros.
- Então será que você não está de acordo consigo mesmo? - quis saber o sr. Prata. - Talvez na realidade você tenha desejos bem diferentes.
- Pode ser - respondeu Mug.
- Bem, se for assim, você poderá ter uma surpresa meio desagradável, meu caro Mug. É claro que, nesse caso, você não conseguirá; se tentar, cairá e quebrará a perna.
Em matéria de mágica, as coisas não são tão simples assim. Não mesmo! Caso contrário, a escola de mágica seria dispensável, tanto o primeiro grau como o colegial e a universidade. Mas, se você se acha capaz, talvez queira tentar assim mesmo.
- Melhor não -, murmurou Mug, voltando para seu lugar. - É bem mais difícil do que
eu imaginava.
- É bom que você reconheça isso -, disse o sr. Prata, recolocando os óculos. Com isso, por hoje a aula acabou. Até amanhã.
Voltei para casa com Mug e Mali. Os dois caminhavam perdidos em seus
pensamentos, e eu não quis interrompê-los.
Nas três semanas seguintes estive ocupado com outros assuntos. Eu havia sido convidado pelo ministro de Fábulas e Contos de Fada do Reino dos Desejos para fazer um roteiro de visitas através do país, quando tive oportunidade de ver muitas coisas extraordinárias e interessantes. Mas não falarei disso agora. Assim que voltei, fui direto à escola de mágica, para saber o que as crianças já haviam aprendido, até então, especialmente meus amigos Mug e Mali.
A classe estava empolvorosa, tentando executar a última lição, que era fazer coisas se moverem sem tocá-las, apenas pela própria força do desejo. Mug tinha um palito de fósforo diante de si e Mali uma caneta tinteiro; as outras crianças tentavam com agulhas de costura, lápis ou palitos de dente.
O sr. Prata repetia várias vezes o exercício. Fazia, por exemplo, sua cartola flutuar até o cabide e depois voltar à sua cabeça, ou fazia um pedaço de giz escrever sozinho alguma coisa na lousa. Sentadas, as crianças faziam um esforço enorme, até ficarem com as faces afogueadas, mas nada acontecia.
- Talvez vocês não estejam conseguindo estabelecer um verdadeiro contato com as coisas que escolheram - sugeriu o professor. - Tentem um outro objeto.
As crianças trocavam os objetos, tentando com suas borrachas, bonés ou canivetes. Mali colocou uma bola de pingue-pongue à sua frente e Mug se concentrou em um pequeno regador, tentando fazê-lo regar um vaso de flores que estava na janela. Mas foi em vão.
- Vocês devem imaginar com toda força - explicou o sr. Prata - que o objeto faz parte de vocês, assim como seus braços e pernas. Vocês não saberão como conseguem movê-los, simplesmente o farão porque estarão lá dentro. Tentem, em sua imaginação, penetrar no objeto até o sentirem por dentro, como se fosse seu nariz ou seu dedo. Vamos lá, é fácil!
E, como se quisesse provar o que acabava de dizer,fez um caderno voar pela sala de aula, como uma grande borboleta. O caderno voou em torno da cabeça de Mug e lhe deu umas palmadinhas, depois voltou até o sr. Prata. No mesmo instante, o regador pulou para o alto, mas não voou até o vaso. Parou em cima da cabeça do sr. Prata, despejou toda a água e se estatelou no chão.
- Opa! - Mug exclamou, assustado. - Desculpe, professor, não era minha intenção.
A classe toda caiu na gargalhada. Enxugando o rosto com um grande lenço azul, o sr. Prata deu uma risadinha e disse:
- Claro que era, meu caro Mug, caso contrário não teria acontecido. Você apenas não sabe que esse era seu desejo. Não faz mal, não sou feito de açúcar, mas fico contente, pois finalmente você conseguiu chegar ao princípio. Como vocês vêem, é preciso ter muito cuidado quando se trata de fazer mágica.
Não sei como se explica, mas a partir do sucesso inicial de Mug todas as crianças, uma depois da outra, foram descobrindo como a coisa funcionava. Logo começaram a flutuar pela sala de aula todos os objetos imagináveis. Uma semana depois pude certificar-me de que todas as crianças eram capazes, por meio de um ligeiro gesto com a mão ou apenas pela força do olhar, não só de movimentar objetos pequenos, como lápis ou bolas de pingue-pongue, mas também de fazer mesas e cadeiras saírem andando ou de fazer um armário levitar. Explicaram-me que o peso não interferia em nada.
Muitas vezes, para a alegria de seus pais, Mug e Mali exercitavam sua nova habilidade, como se fosse lição de casa, pondo e tirando a mesa das refeições, usando apenas a força de seu desejo. Facas, garfos, colheres e pratos marchavam em fila até a sala de jantar ou se retiravam para a cozinha, onde se lavavam e se enxugavam sozinhos. Claro que isso era muito prático para os pais, que estavam orgulhosíssimos
dos gêmeos.
A segunda lição, contudo, foi bem mais difícil, e algumas crianças precisaram de um mês para ver seus esforços compensados. A tarefa consistia em chamar e fazer aparecer objetos que não estavam diante dos olhos, mas se encontravam a uma distância mais ou menos grande.
O sr. Prata trouxe para a aula um pequeno imã e um saquinho cheio de limalha de ferro, que ele despejou e espalhou cuidadosamente numa folha de papel.
- Aqui vocês estão vendo apenas um pouco de limalha de ferro, espalhada sem nenhuma ordem - ele explicou. - Agora, prestem atenção!
O professor segurou o imã debaixo do papel e imediatamente a limalha de ferro formou um determinado desenho.
- Vejam - ele disse -, à sua frente havia um objeto, o imã, que conduziu a força do desejo de vocês numa direção determinada. Mas, agora que o objeto se encontra em outro lugar, vocês devem conseguir fazer isso com sua própria força. Para isso, era necessário imaginarmos o objeto tão nitidamente como se ele estivesse à nossa frente. Nada deveria nos distrair e ninguém poderia pensar em mais nada. Cada detalhe, por menor que fosse, era muito importante, caso contrário a experiência falharia. Ou então, por descuido, poderia aparecer algo totalmente diferente do esperado. Foi o que aconteceu certa vez com Mali. Durante a aula ela sentiu fome e, em vez de invocar suas sandálias, como deveria, viu-se de repente com
o lanche grudado nos pés.
Em primeiro lugar as crianças precisaram exercitar-se com objetos bem conhecidos, de seu uso diário,como pentes, cintos ou bonés. No princípio, colocavam essas coisas na sala ao lado; depois, diante do prédio da escola e, à medida que progrediam, cada vez mais longe. Voltavam então à sala de aula e passavam a desejar que suas coisas voltassem para perto delas.
Quando finalmente todos os alunos conseguiram realizar essa tarefa, o sr. Prata passou a ensiná-los a invocar coisas que ainda não conheciam e que nem sabiam onde estavam. Para isso eles precisavam ter um retrato, que deveriam registrar muito bem na memória, ou apenas uma descrição, que tornava a tarefa mais difícil ainda. Eram coisas como, por exemplo, uma flor que crescia numa certa montanha, ou uma determinada pedra no fundo de um lago, ou até um anel valioso que fazia parte de um tesouro enterrado. O mais difícil de tudo era desejar que tudo isso voltasse, depois, ao devido lugar. O sr. Prata, sempre muito paciente e alegre, tornava-se sério e enérgico ao falar de princípios dos quais não abria mão:
- Só os incompetentes e desonestos se apropriam do que não precisam realmente e
trazem desordem ao mundo.
Ele explicava que os alunos que infringissem essa norma não conseguiriam progredir e, portanto, seriam obrigados a abandonar a escola. Claro que nenhuma das crianças queria isso e, assim, todas se esforçavam ao máximo para fazer tudo certo.
Como eu já disse, durante esses exercícios os alunos não permaneciam o tempo todo no prédio da escola e, às vezes, até se afastavam bastante dele.
Acompanhei-os em algumas excursões e fiquei conhecendo lugares muito bonitos do Reino dos Desejos. Muitas vezes, porém, tinha meus próprios compromissos, e por isso não posso dizer que tenha visto pessoalmente os alunos sempre devolverem aos devidos lugares o que deslocavam por meio de sua mágica. No entanto, como o sr. Prata estava satisfeito com os resultados, suponho que isso tenha ocorrido.
O outono havia chegado ao Reino dos Desejos. Soprava um vento forte e chovia quase todos os dias. Como me resfrio facilmente, eu preferia ficar em casa.
Além disso, tinha recebido do diretor da Biblioteca do Reino a incumbência de redigir um relatório detalhado sobre desejos sonhados no mundo do dia-a-dia. Embora esse trabalho melancólico não fosse bem do meu agrado, não pude rejeitá-lo, já que era hóspede do país. A lição seguinte, portanto, só conheço através dos relatos de Mug e Mali, que toda noite me contavam sobre seus progressos na escola de magia.
A lição seguinte do sr. Prata foi sobre a arte de transformar uma coisa em outra. Pelo que pude entender, a tarefa exigia a construção de uma "ponte mágica", por assim dizer. Era preciso descobrir o que uma coisa tinha em comum com outra, o que as tornava semelhantes. Através dessa tal "ponte", e por meio da força do desejo, deveria realizar-se a transformação.
Transformar uma maçã em bola era relativamente fácil. Qualquer um logo percebe que as duas têm forma esférica, o que já manifesta claramente sua íntima semelhança.
Era um pouco mais complicado, por exemplo, transformar um garfo em maçã. Nesse caso, o raciocínio era o seguinte: um garfo sempre será um garfo, seja grande ou pequeno. Também não importa que seja de ferro ou de madeira, pois sempre será um garfo. Acontece que existem "garfos" de madeira de todos os tamanhos, em todas as ramificações de árvores; na verdade, pode-se dizer que uma árvore nada mais é que um grande garfo cheio de dentes. Isso também se aplica à macieira. Seu fruto, a maçã, aparentemente nada mais é que uma pequena parte da macieira; no entanto, em cada semente de maçã se encontra uma macieira inteira. Sendo assim, podemos afirmar: uma maçã é um garfo. E, sendo assim, o contrário também é verdadeiro: um garfo é uma maçã. Usando-se corretamente a força mágica do desejo, pode-se transformar uma coisa em outra através dessa ponte.
Nesse exemplo a ponte ainda é relativamente curta, chega-se rapidamente de um objeto a outro. No entanto existem contextos muito mais complicados, que muitas vezes exigem vinte, cinqüenta, às vezes até mais de cem elos intermediários. Mug e Mali ficavam dias inteiros quebrando a cabeça para conseguir realizar certas tarefas.
Quem não acredita, que tente encontrar sozinho a ponte mágica entre uma máquina de costura e um aquário com peixinho dourado, entre um coco e uma sanfona, ou entre chinelos e óculos escuros.
Certa noite, Mali me disse, toda entusiasmada:
- Sabe o que é mais sensacional nisso tudo? É que em todo o Reino dos Desejos, provavelmente no mundo todo, não existem duas coisas que, de um modo ou de outro, não tenham algum tipo de relação. Tudo está misteriosamente ligado, e por isso é possível transformar tudo em tudo... quer dizer, se soubermos como fazer.
- Isso acontece - acrescentou Mug, com cara de sabichão - porque na verdade tudo é uma coisa só. Pelo menos foi o que o sr. Prata disse.
Passei a refletir muito sobre isso e, honestamente, até hoje ainda não cheguei a uma
conclusão.
A lição seguinte, a quarta, pelo visto todas as crianças conseguiram realizar com bastante rapidez. As aptidões aprendidas até então deveriam ser aplicadas não mais a objetos, mas à própria pessoa. Quando voltei a dar uma passada pela escola, uma semana depois, observei como todos os alunos estavam ocupados em deslocar-se de um lugar para outro e voltar no mesmo instante.
É verdade que nessa ocasião ocorreu um incidente desagradável, desta vez
envolvendo meu pobre amigo Mug.
Nesse exercício cada um precisava imaginar exatamente e em todos os detalhes o lugar para o qual se deslocaria. Mug tinha escolhido seu canto predileto na floresta, mas esqueceu-se de imaginar uma das muitas árvores que havia ali. Ao desejar se deslocar para lá, trombou com tanta força nessa árvore, que viu estrelas e caiu no chão, atordoado. Ele demorou bastante para voltar, o sr. Prata já estava começando a se preocupar seriamente. Finalmente Mug apareceu, com um galo enorme na testa e um olho roxo, que permaneceram por umas duas semanas, apesar das compressas de ervas que sua mãe lhe aplicava. Esse incidente pelo menos lhe serviu de lição, e todos os seus colegas também passaram a tomar mais cuidado.
Um outro exercício da quarta lição era voar. Não é a mesma coisa deslocar-se num piscar de olhos para um lugar qualquer, sem ter que percorrer um trajeto, ou deslizar como um pássaro pêlos ares. Do mesmo modo como antes tinham aprendido a erguer coisas no ar e fazê-las flutuar, os alunos agora tentavam fazer o mesmo com eles próprios. Antes de alçar vôo, era preciso respirar num determinado ritmo, depois prender um pouco a respiração, erguer os cotovelos para os lados e, batendo os braços como se fossem asas, desprender-se lentamente do chão. Já no ar, podia-se esticar os braços e dirigir o vôo com movimentos precisos das mãos. Tudo isso exigia um certo treino. No início, quase todas as crianças davam cambalhotas no ar, pois se agitavam demais. Assim, os primeiros exercícios foram feitos na sala de aula, até os alunos conseguirem decolar com segurança até o teto, sem bater em nenhum lugar. Só depois disso as aulas passaram a ser ministradas ao ar livre. Lá era bem mais difícil, pois, como já disse, era quase inverno e ventava muito. Uma rajada de vento, por mais fraca que fosse, podia tirar uma criança da sua rota e soprá-la para outro lugar, pois não havia nada que a segurasse. Exatamente isso parecia divertir mais ainda as crianças, que gritavam e berravam, rodopiando como se estivessem numa montanha russa invisível. O sr. Prata, que evidentemente voava com elas, procurava em vão chamar sua atenção e fazê-las voltar à ordem. Só depois que alguns alunos trombaram dolorosamente ou ficaram presos nas copas das árvores, todos se acalmaram e passaram a treinar com seriedade e disciplina.
Minha estada no Reino dos Desejos estava se aproximando do fim. Certa noite, o sr. Prata foi me visitar. Ele nunca tinha feito isso antes, portanto presumi que o motivo daquela visita fosse muito importante. A pedido do professor, fomos para meu quarto, para ficarmos a sós.
- Logo o senhor voltará ao mundo do dia-a-dia, caro amigo - ele começou a falar -, e suponho que vá contar sobre a nossa escola, não é verdade?
- De fato - concordei -, eu pretendia escrever alguma coisa sobre ela.
- Bem - continuou o sr. Prata -, não tenho nada contra, aliás, provavelmente foi para isso que veio até aqui. É claro que o senhor continua sendo nosso convidado para observar nossas aulas durante o tempo que ainda permanecer aqui, mas eu gostaria de lhe pedir um enorme favor.
- O que é? - perguntei.
- Nos exercícios das próximas lições - disse o sr. Prata -, o senhor poderá descrever à vontade o que as crianças aprendem, mas, por favor, não dê nenhuma indicação de como o fazem.
- Por quê? - eu quis saber. - Pois é exatamente isso que mais interessaria a meus leitores.
- Veja, meu caro - retrucou pensativo o sr. Prata -, nunca se sabe em que mãos o seu relato poderá cair. Durante os exercícios das nossas crianças estou sempre presente, para garantir que tudo corra bem e que não aconteça nenhum dano. No entanto, pode ser que entre seus leitores haja pessoas irresponsáveis, levianas ou fracas de caráter, que não conseguiriam resistir à tentação de experimentar um ou outro truque. Isso poderia ter conseqüências desastrosas, não só para essas pessoas como também para outras.
Sorri.
- Não se preocupe, caro mestre - tentei acalmá-lo -, seja como for, para nós do mundo do dia-a-dia a sua mágica não funciona, de jeito nenhum. Além disso, a maioria dos meus leitores nem vai acreditar no que vou escrever.
- Mesmo assim - insistiu o sr. Prata -, pode ser que o senhor esteja enganado. Portanto, por favor, faça o que estou pedindo.
- Se isso o tranqüiliza - respondi, hesitante.
- Promete? - ele perguntou.
- Está bem, prometo.
Essa promessa devo cumprir agora, embora não tenha tanta certeza de que seja necessário. Daqui para a frente contarei apenas o que as crianças aprenderam, porém não mais como o faziam.
A quinta lição consistia em tornar-se invisível. Nesse estado, além de se poder ir a qualquer lugar sem ser notado, era possível também, como nas lições anteriores, deslocar-se à vontade para qualquer lugar ou sair flutuando no ar. Mais do que isso, dava para atravessar portas fechadas e muros, como se atravessa neblina. Quando Mug e Mali finalmente conseguiram dominar essa técnica, eles me contaram que a invisibilidade também tinha uma desvantagem. Quem ficava invisível enxergava as coisas à sua volta com pouca nitidez, como se estivesse olhando tudo através de véus coloridos.
Assim, não era possível ler uma carta ou um livro; para isso, era preciso voltar a ser visível. Esse estado também provocava uma sensação desagradável em todo o corpo, além de acarretar um sério perigo. Se alguém se tornasse visível por engano, por exemplo, enquanto estivesse atravessando um muro largo, uma rocha ou algo parecido, ficaria irremediavelmente preso lá dentro.
Porém isso não aconteceu com as crianças, pois o sr. Prata estava ali para cuidar delas. Em todo caso, comecei a entender que a promessa que o professor me obrigara a fazer tinha um certo fundamento. Embora eu continue tendo certeza de que essas coisas são impossíveis no nosso mundo do dia-a-dia, fico arrepiado só de pensar no que poderia acontecer. Seja como for, na última semana da minha permanência no Reino dos Desejos acabei me convencendo totalmente da necessidade de determinadas medidas de segurança. Aconteceu então uma tragédia que quase fez Mug e Mali serem reprovados. Mas vou contar desde o começo.
A sexta e a sétima lições de certo modo se confundiam, embora quanto às dificuldades as duas fossem bem diferentes. Nos dois casos, tratava-se de criar. A sexta lição envolvia a criação de coisas; a sétima e última lição do ano letivo referia-se à criação de seres animados. É isso mesmo, os alunos de magia do Reino dos Desejos já aprendem na escola primária a imaginar coisas e seres que nunca existiram em lugar
nenhum, tornando-os reais por meio da força de desejo.
Assim como nós pintamos, desenhamos ou fazemos modelagem, Mug e Mali se exercitavam em criar coisas a partir do nada, ou melhor, a partir de sua fantasia. Como nas lições anteriores, também agora era da maior importância cada um imaginar os mínimos detalhes do objeto, como se ele estivesse à sua frente. Só que agora se tratava de uma imagem completamente nova, que não existia nem na lembrança.
No início as crianças realizavam esse exercício muito devagar, permaneciam de uma a duas horas em total concentração, para condensar as idéias mais simples até se tornarem visíveis. Algumas coisas se materializavam apenas pela metade, ficavam incompletas: metade de uma boneca, um cachimbo sem cabo, uma bicicleta sem rodas... Depois de uns dias, no entanto, Mali chegou ao ponto de conseguir criar um copo enorme de suco de amora, que dava para beber de verdade, em pouco menos de quinze minutos. A partir daí, todos progrediram rapidamente. Mais uma semana e Mug foi capaz de fazer aparecer em onze minutos uma locomotiva inteira, que bufava e soltava fumaça, em plena sala de aula. Todos tossiram e quase se asfixiaram, até ele conseguir fazer a máquina desaparecer de novo. Apesar desse incidente, dava gosto ficar vendo o que as crianças produziam: caixinhas de música e lampiões, patins de gelo e aquecedores, armaduras de cavaleiros e lunetas, chapéus de caubói e fogos de artifício... Simplesmente tudo!
A sétima e última lição, a criação de seres vivos, era muito mais difícil e demorada. Mali precisou de dois dias inteiros para sua primeira obra, um lindo peixinho colorido que brilhava no escuro e nadava num aquário. A menina ficou tão orgulhosa e gostou tanto da sua criação, que só a muito custo fez o peixinho desaparecer novamente. Mas o sr. Prata tinha deixado muito claro para ela e para todos os outros alunos que era de extrema importância, e uma questão de responsabilidade, sempre fazer desaparecer tudo o que fosse criado, principalmente quando se tratava de seres vivos. O professor explicava que uma criatura daquelas, assim que se tornasse independente, poderia provocar efeitos imprevisíveis sobre a evolução da história de seu criador. E isso só poderia acontecer se fosse absolutamente necessário e, principalmente, muito bem pensado.
- Lembrem-se: toda criatura modifica seu criador - ele repetia sempre.
Embora as crianças parecessem ter opiniões muito próprias sobre a importância desse ponto, não se manifestavam, e, obedientes, submetiam-se às instruções do professor.
Mug e Mali tinham iniciado uma espécie de competição, procurando um superar o outro com suas idéias. Nos dias que se seguiram, a menina produziu uma espécie de ave do paraíso, maravilhosa de se ver e que sabia assobiar o hino nacional do Reino dos Desejos; o menino criou um pequeno animal fabuloso, semelhante a um cavalinho miniatura, roxinho, de pêlo brilhante como seda e que, quando alguém perguntava, indicava as horas batendo com o casco no chão. Em seguida, Mali inventou um cogumelo pulador e tocador de trombeta, e Mug fez um homenzinho de duas cabeças, que ficou o tempo todo brigando e reclamando da vida, até a magia ser desfeita. Finalmente Mali criou uma mulherzinha marionete, quase do seu tamanho, que sabia dançar bale e que chorou amargamente quando soube que deveria desaparecer novamente; e Mug inventou um duende mecânico, que afirmava com todas as letras ser o verdadeiro Mug e até ameaçava fazer o menino desaparecer se ele continuasse a contradizê-lo. Obviamente Mug não se intimidou e deu sumiço no duende.
Veio então aquela tarde fatídica, último dia da minha estada no Reino dos Desejos.
O inverno havia chegado e a neve cobria tudo. Para poder desfrutar pela última vez a beleza da paisagem, saí para dar um passeio de esqui. Percorri a margem do rio congelado e fui parar num bosque. Ao iniciar a descida de uma colina, sofri uma queda tão infeliz que torci o tornozelo. Doía terrivelmente e, a cada tentativa de apoiar o pé, a dor aumentava. Percebi que não conseguiria chegar sozinho à pensão. Gritei, gritei, o mais alto que pude, mas era uma região erma e ninguém me ouviu. A tarde foi caindo e o frio se tornava mais intenso, congelando-me até os ossos. O sono queria me vencer, mas lutei contra ele, pois sabia que, se adormecesse, estaria perdido.
Olhei para o céu, que rapidamente ia se cobrindo com um véu rosa-avermelhado.
De repente, avistei duas figuras minúsculas, sobrevoando o bosque de um lado para o outro, como se estivessem à procura de alguma coisa. Acenei e berrei com todas as forças, e, finalmente, os dois lá em cima me notaram, aproximaram-se rapidamente e desceram perto de mim. Eram meus dois jovens amigos Mug e Mali. Devo confessar que nunca na vida apreciei tanto a companhia de crianças como naquele momento.
Rapidamente contei-lhes qual era a minha situação e os gêmeos me disseram que tinham imaginado, de fato, que alguma coisa acontecera comigo, por isso tinham saído à minha procura.
- Se você quiser - sugeriram - podemos levá-lo para casa já.
- Mas como? - indaguei.
- Ora, pelo ar, assim como viemos. Juntos, nós dois conseguimos.
Sofro de vertigens e, diante da simples idéia de estar voando lá no alto, muito acima do chão, seguro apenas por quatro mãos de criança, comecei a transpirar de medo, apesar de todo o frio.
- Será que não existe outro jeito? - atrevi-me a perguntar, desanimado.
- Claro - disse Mali depois de pensar um pouco -, vou fazer aparecer uma montaria para você.
- Deixe comigo - ponderou Mug -, sei fazer isso melhor do que você.
- O que está querendo dizer? - quis saber Mali, colocando as mãos desafiadoramente na cintura. – Melhor do que eu?
- Estou querendo dizer que você ia levar séculos para fazer uma montaria - Mug respondeu.
- Por acaso está afirmando que seria capaz de fazer mais depressa do que eu?
- Estou, sim, cara irmãzinha!
- Nem você acredita nisso!
- Pois tenho certeza!
- Presunção e água benta cada qual toma a contento.
- Presunçosa é você!
Os gêmeos começaram um bate-boca que, se eu bem os conhecia, poderia levar horas sem resultar em nada. E meu pé doía insuportavelmente.
- Ouçam - gemi -, será que não dá para vocês fazerem uma mágica juntos? - (ai, meu Deus, eu nunca deveria ter dito isso!)
Os dois pararam de discutir e me fitaram, surpresos.
- Não é má idéia - considerou Mug.
- Será que dá? - objetou Mali. - Até hoje nunca fizemos uma obra conjunta.
- Talvez a dois seja duas vezes mais rápido.
- Está bem, vamos tentar.
Os dois fecharam os olhos para se concentrar.
- Deve ser um cavalo - Mali murmurou.
- É, e bem grande e forte - Mug acrescentou -, para poder carregar os três.
- Talvez com asas, ou algo assim - Mali sugeriu -, para dar mais velocidade.
- Bom, e de que cor?
- Uma cor escura!
- Não, clara!
- Tanto faz, o importante é que seja fogoso.
- Você está pronta? - perguntou Mug.
- Ainda falta um pouco.
- Vamos logo, sua molenga!
- Estou pronta.
- Então vamos lá!
Fez-se silêncio por alguns minutos. As crianças estavam sentadas a meu lado, na neve, com os olhos fechados e os punhos cerrados. Percebia-se que faziam um esforço tremendo. De repente, um barulho medonho nos fez estremecer. Parecia o som de um berro trovejante e de um grito agudo ao mesmo tempo. Mug e Mali arregalaram os olhos, voltei-me com dificuldade. A poucos metros de nós encontrava-se uma criatura como eu nunca tinha visto na vida.
Era realmente enorme e disforme como um hipopótamo, do tamanho de um elefante. Seu pelame era xadrez, preto e branco. Na pressa, meus amigos tinham esquecido a cauda e a crina. Na cabeça quadrada brilhavam dois olhos enormes como faróis, sem pupilas, parecendo bolas de fogo. Tinha uma orelha só, no lugar da outra havia um buraco. Nas costas estavam grudadas duas asinhas ridículas, transparentes como asas de mosca ou de libélula. O monstro, depois de bater no chão com suas patas grossas como salsichões, empinou. Podia-se ver, então, que seu pelame se abotoava na barriga, como um casaco apertado. Bufava pelas narinas do tamanho de um balde, expelindo duas labaredas vermelho-azuladas. Em seguida, escancarou a bocarra e gritou mais uma vez (não se podia chamar aquilo de relinchar). A tal criatura
não tinha dentes nem língua.
- A culpa é sua - sussurrou Mali.
- Ou sua - respondeu Mug com raiva. - Mas agora tanto faz. O que importa é que nos leve para casa.
- O quê? - perguntei, batendo os dentes. – Vocês acham que vou montar nisso aí?
- Infelizmente vai ser preciso - disse Mali. – Agora não temos outra escolha e, afinal, é melhor do que nada.
- Venha, faça um esforço - Mug tentou animar-me. - Coragem, amigão.
Só que não deu muito certo. Quando Mug se aproximou do monstro para montá-lo, este refugou, batendo com as patas dianteiras como se quisesse atingi-lo. Embora não tivesse cascos, o som foi de dois bate-estacas esmagando o chão.
Mug ficou visivelmente assustado, mas esforçou-se para aparentar calma.
- Ei, sua besta, trate de obedecer! - gritou zangado, mas com a voz trêmula. - trouxemos você para cumprir uma tarefa. Se não fizer tudo direitinho vamos fazê-lo desaparecer imediatamente.
Quando aquela coisa disforme ouviu essas palavras, soltou um berro ao mesmo tempo terrível e aflito e saiu em disparada, espalhando neve por todos os lados. Tentava levantar vôo com suas asas minúsculas, mas só conseguia dar uns pulos. Por algum tempo ouvimos os estalos das árvores e arbustos através dos quais o monstrengo abria caminho, depois tudo ficou em silêncio.
- Volte! - gritavam Mug e Mali. - Volte imediatamente!
Tudo em vão. A infeliz criatura não obedecia. Eles haviam criado um monstro, que se ornara independente e seguiria seu próprio caminho. Mug e Mali ficaram se entreolhando demoradamente, preocupados.
- O que o sr. Prata vai dizer disso tudo? – murmurou o menino.
A menina só deu um longo e sentido suspiro.
Honestamente, já não lembro bem como consegui, mesmo assim, chegar à pensão. Eu já estava meio congelado e quase sem sentidos. Acho que os gêmeos, apesar de meus protestos, levaram-me voando pêlos ares, pois tenho vagas lembranças de imagens indistintas, em que me vejo suspenso numa altura estonteante, por cima de uma paisagem noturna de inverno, com alguém me segurando pela gola do casaco.
Depois disso, devo ter tido febre por vários dias, meu pé ficou dormente e insensível. Quando finalmente tudo passou, vi-me de novo em minha cama no mundo do dia-a-dia. Alguém deve ter dado um jeito de me transportar do Reino dos Desejos de volta para cá.
Minha primeira providência foi sentar e escrever uma carta ao sr. Rosmarino Prata, narrando tudo o que tinha acontecido. Sentia-me de alguma maneira co-responsável, pois na verdade meus dois amigos tinham provocado toda aquela desgraça por minha causa. Assim, fiquei muito aliviado quando, duas semanas depois, recebi a resposta do professor, comunicando que o assunto já tinha sido resolvido. Mug e Mali quase tinham sido reprovados, mas, em vista das circunstâncias especiais e de seu talento excepcional, decidiu-se deixá-los passar de ano. O professor, pessoalmente, tinha saído à caça do produto disforme da mágica em dupla e, com a ajuda dos dois alunos, fizera-o sumir, o que, aliás, também foi a melhor solução para a criatura deplorável. Mug e Mali tinham amadurecido muito com a experiência e me mandavam muitas
lembranças.
Com esta boa notícia quero também encerrar meu relato. Tudo isso, como foi dito no início, aconteceu há muitos anos. Meus dois jovens amigos já freqüentam a Universidade de Magia. Aliás, para evitar qualquer mal-entendido, quero acrescentar que eu mesmo não aprendi a fazer mágica nessa viagem. É verdade, nem um pouquinho! Mas também não nasci no Reino dos Desejos...